ITM

FIQUE POR DENTRO
DOS TEXTOS DO ITM

Home » Textos » Luto – Qual é sua importância?

Luto – Qual é sua importância?

Por: Andreneide Dantas

2015

 

Pergunta fundamental uma vez que existe o intento de transformar algo que é um processo normal em um transtorno, e dessa forma medicar o sujeito e retirar dele a possibilidade de subjetivar e elaborar a perda.

Baseado nos ensinamentos de Freud e Lacan, em minha experiência enquanto psicanalista e também com os aportes desse seminário “A Função do Luto” (ministrado pela psicanalista Susana Palacios), digo que a função do luto é a de um trabalho fundamental a ser feito, para que o sujeito possa elaborar significantes para lidar com o ‘buraco’ deixado em sua vida pela perda de um ente querido.

Em Luto e Melancolia, Freud descreveu o luto como uma reação à perda de um ente querido, mas também pode ser em relação à perda de uma abstração que ocupou o lugar de um ente querido: como os pais, a liberdade ou um ideal.

Podemos nos perguntar: o que cada um pode fazer diante da morte de uma pessoa querida? O que fazer para organizar seu universo simbólico?

É comum diante de uma perda que exista uma inibição e circunscrição do eu do sujeito, por isso ele se desinteressa pelo mundo à sua volta, pois o único que lhe interessa é o objeto amado. Isso acontece porque o luto provoca um abatimento característico com perda de interesse pelo mundo exterior, da capacidade de eleger um novo objeto de amor e o afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a memória do falecido. Nesse momento, aquele que perdeu, se devota às rememorações das lembranças: sua fala e tudo que lhe interessa é em relação ao ente perdido, o que diz respeito a outros assuntos ficam empobrecidos, sem brilho, pois o Eu é absorvido pela dor.

Nesse momento, o enlutado retira sua libido do mundo e investe somente em seu sofrimento: fica triste, se lamenta, não quer saber de mais nada e não tem disposição para sair de casa, se divertir ou conversar. Até as mais simples tarefas ficam difíceis de serem realizadas.

Uma das primeiras reações que encontramos diante da perda, é a negação da morte, depois o sujeito vai fazendo o trabalho de desinvestimento, perde o interesse no exterior e somente posteriormente – quando simboliza a perda – volta novamente a reinvestir a libido em outros objetos. Se primeiramente tem lugar a negação, posteriormente o sujeito sente-se culpado pela morte (culpa por ter sobrevivido) ou pela perda que sofreu. “Se eu tivesse feito tal coisa”, “se eu tivesse estado mais tempo com ele”; “se não tivesse brigado tanto com ela” lamentam-se alguns pacientes.

O mundo fica sombrio quando o objeto amado não existe mais e o Eu do sujeito tem que fazer o trabalho de desinvestimento do mundo em um processo, que é lento e doloroso. E esse trabalho de elaboração psíquica será próprio de cada um, pois não dá para quantificarmos quanto tempo cada pessoa pode levar para chorar, falar das lembranças e depois abrir mão das expectativas e dos ideais em relação ao objeto que perdeu. E não poderia ser diferente, uma vez que cada sujeito tem sua singularidade.

Sendo um tempo particular a cada um, não podemos acreditar que quando alguém está triste e sofrendo diante de uma perda ele está doente! Como considera o último Manual de diagnóstico de doenças Mentais DSM V, que estipula que um período de luto que dure “mais que algumas semanas”, seja tratado como depressão e nesse caso, medicado. Na verdade, o que pretendem é medicalizar a vida, inventando transtornos para aquilo que é próprio do ser humano: sua dor e tristeza diante das perdas.

Devemos nos preocupar é quando esse trabalho não é realizado, pois o resultado é que a existência do sujeito fica ameaçada em um luto sem fim, como no caso da melancolia, no desencadeamento de um sintoma, angústia (“pânico”) ou de uma inibição. Que são formas de detenções que impossibilitam que o sujeito continue avançando e fazendo suas conquistas.

Entendemos em psicanálise que existe a dificuldade – na maioria das culturas – para aceitar a morte. E isso está ligado ao fato de não querer aceitar sua própria morte, como disse-nos Freud, “o homem não acredita na própria morte”1. E na “medida em que se assemelha ao inominável, deixa o sujeito sem palavras para abordar aquilo que o toca na provação que ele partilha com o enlutado2.

No seminário “O desejo e sua interpretação”, de Lacan, encontramos o luto como um buraco no real. E no seminário sobre “A Angústia” que “Só estamos de luto por alguém de quem possamos dizer a nós mesmos: Eu era sua falta. Ficamos de luto por pessoas a quem tratamos bem ou mal, e diante das quais não sabemos que exercemos a função de estar no lugar de sua falta. O que damos no amor é, essencialmente, aquilo que não temos, e quando isso que não temos volta para nós, com certeza há uma regressão e, ao mesmo tempo, uma revelação daquilo em que faltamos para com essa pessoa, para representar essa falta. Mas aqui, em razão do caráter irredutível do desconhecimento concernente à falta, esse desconhecimento simplesmente se inverte, ou seja, a função que tínhamos de ser sua falta, vamos agora poder traduzi-la em havermos faltado para com ela – quando era justamente nisso que lhe éramos preciosos e indispensáveis. ”

Por isso no luto sempre estará em jogo o narcisismo, pois algo de cada um morre, naquele que morreu. Isso significa que a cada perda, uma outra – a perda original – é re-significada. Sendo assim, cada perda remete sempre a uma anterior. Não é incomum que escutemos que diante da morte de um ente querido, alguém não tenha chorado e isso causou estranheza para os que estavam ao redor. Mais adiante, frente a morte de algum outro conhecido ou familiar – não tão próximo – tenha tido um sofrimento desproporcional. Nesse caso, essa segunda morte remeteu a anterior, por isso todo o sofrimento. Pois foi nesse momento que o sujeito sentiu o “buraco” deixado pela perda que tinha sofrido anteriormente.

Aprendemos com a psicanálise que quando a castração opera, o sujeito reconhece o que perdeu. E isso não é sem dor. Isso significa que a castração é um luto a ser realizado, pois “esse buraco no real mobiliza toda ordem na estrutura simbólica, onde a falta que é o suporte da castração, perde sua localização e o sujeito é reenviado a um lugar de privação, de onde manifesta sua dor mais como posta em cena que pela via da articulação discursiva”3. Diante da morte do ser amado, o sujeito se apresenta em cena com seu choro, seu desespero e mostra primeiramente com seu corpo afetado, o que ainda não pode colocar em seu discurso.

Através do trabalho de elaboração do luto, com a aceitação da perda, o sujeito pode realizar uma segunda morte, a do objeto que esse foi para ela: ‘não poder mais falar com ele é o que mais me dói’, disse uma paciente. E isso tocava diretamente no seu narcisismo, causando-lhe uma ferida. Essa segunda morte, em termos lacanianos, é o assassinato do objeto, onde o sujeito terá que perder no simbólico – e isso serve para qualquer perda: trabalho, fase de vida, crescimento dos filhos, saída da infância, da adolescência, passagem do tempo – aquilo que perdeu no real. E é fundamental que isso aconteça, pois quando alguém nega a perda de algo ou de alguém, quando renega e insiste naquilo que não existe, não aceita a realidade e isso é muito prejudicial.

Aceitar essa perda no simbólico é fazer isso na cadeia discursiva, é quando alguém consegue dizer, ‘quando meu pai morreu’ em vez de dizer ‘quando ele foi embora‘. Na segunda frase, negando a morte do pai, nega a realidade e algo fica em “suspenso”, sem possibilidade de elaboração. Quando isso acontece, o sujeito paga com o seu ser (com sofrimento, sintomas, doenças) para sustentar um morto, alguém que não está mais vivo. Nesse caso, existe uma nostalgia e enaltecimento em relação àquele que morreu e dessa forma não consegue “matá-lo” no simbólico.

E quando alguém ‘insiste’ em não fazer o luto é por não querer saber da própria morte, da sua castração.

Para concluir, aceitar a perda de alguém ou de algo e atravessar o luto, requer um trabalho de elaboração que compreende vários tempos, e esses não estão ditados pela cronologia, eles dizem respeito ao tempo de simbolização de cada um, de acordo com suas possibilidades. Diante da perda no real quando o sujeito se vê privado: renega, nada quer saber, fica sem recursos de representação na cadeia significante, por isso se mostra em cena (com choros, gritos, lamentos), se culpa, se afasta das ocupações ou o faz com pesar, depois consegue retirar a libido aderida ao objeto e desinveste seu amor na pessoa que morreu. E quando finalmente realiza o trabalho psíquico, volta a se interessar por outros assuntos, outros objetos, amores, desejos ou ideais. E esse trabalho é feito passo-a-passo.

Sabemos que nem todos conseguem ter recursos simbólicos para fazer esse trabalho de elaboração, é nesse momento que um trabalho de análise é fundamental. Pois possibilita que o sujeito faça um desprendimento, um desapego, em relação ao que não cabe mais sustentar. Aceitar a perda é aceitar a realidade da castração: que a morte faz parte da vida e não há um só sujeito no mundo que possa escapar dela. E dependerá de cada um, elaborar essa perda ou ser esmagado por ela!

Referências Bibliográficas:

Freud, Sigmund – Nós e a morte, Palestra de 1915

Luto e Melancolia, (1917/1915)

Reflexões para os tempos de guerra e morte (915)

Sobre o Narcisismo: Uma introdução (1914)

Sobre a Transitoriedade (1916)

Mannonni, Maud – O Nomeável e o Inominável, Zahar Editor

Palácios, Susana – Seminário A Função do Luto, 2015 – Instituto Tempos Modernos

Lacan, Jacques – Seminário 6 – O desejo e sua Interpretação – Zahar Editor

Seminário 10 – A Angústia

Seminário 7 – A Ética da Psicanálise.