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As mal-dições

Por: Susana Palacios

Trabalho apresentado na Jornada “A Banalidade do Mal”.
São Paulo, 25 de setembro de 2010.

 

Quando nos orientamos com Freud e Lacan, tomamos como alicerce o reconhecimento do incurável. Com este termo me refiro a que tomamos em conta a dor de existir, a falta em ser e o santhome.

 

Este reconhecimento não implica que nós, psicanalistas, sejamos resignados ou pessimistas. É simplesmente a bússola que nos adverte para não percorrer o caminho que desanda no pior, ou seja, o que não é bom que aconteça para ninguém.

 

Quem de nós não sabe por experiência própria que todo ditador vocifera querer o bem de seu povo?

 

Quem de nós não sabe que fazer o bem supostamente excluído de todo mal é a matriz de todos os totalitarismos?

 

Para os psicanalistas saber que tanto o bem como o mal se inscrevem no imaginário, nos possibilita uma orientação clara a respeito das loucuras que habitam o humano.

 

Uma delas, quiçá a maior, ou talvez uma das maiores, é a báscula infernal das peculiaridades narcísicas, essa oscilação suicida que quando tem como alvo o outro e aponta contra ele, bate em si mesmo pelo rebote imaginário e seu efeito bumerangue.

 

Outro inferno humano é a loucura subjetiva de não poder situar no semelhante outra coisa que um outro imaginário privador de um gozo ao que supõe teria direito.

 

Desta forma, qualquer outro é sempre possível de ser transformado em inimigo, o que constrói uma realidade delirante de um mundo malévolo. Loucuras estas que respondem ao “mal de ser dois”.

 

É por saber disto que Freud rechaça a bondade originária do homem, inclusive a inocência das crianças, situando-se assim nas antípodas do projeto Russoniano que acreditou na inocência natural e no poder impessoal do mal, longe do maniqueísmo que San Agustín em suas Confissões, disse ser o que lhe possibilitava ter uma vida licenciosa.

 

Longe do projeto Paulino como da utopia de Thomas Moore. Hegel também contou com um saber que lhe permitiu saber que o mal radicava no olhar que sempre via o mal.

 

Vemos assim, que um olhar paranóico ou um olhar perverso podem construir ao Outro maligno ou ao Ser supremo em maldade, o que reduz o sujeito a uma vítima inocente, a um puro objeto instrumento da vontade do outro.

 

Se o mal, achado no próximo revela o próprio Kakon (o mal interior para os Gregos) u ódio será essa paixão de Ser que emerge no confronto com o semelhante, esse tão parecido e tão diferente, esse estranho, esse estrangeiro que mora no coração de cada um de nós e faz nossa própria extimidade.

 

Como analista temos o dever ético de possibilitar aqueles que nos procuram na urgência,o atravessamento dessa lógica guerreira e letal do “ou um ou o outro”, deste binarismo que reproduz sempre a mesma cena, seja isto pelo erro epistemológico de fecharo espaço em exterior e interior, como por uma satisfação mortífera.

 

Como vemos, o tema do mal é intimo da prática analítica e central na sua teoria. Sem saber o que é o mal, poderíamos ser levados a reforçar os muros do paraíso que como diz Georgio Agambem, não faria mais que fazer crescer o mal rechaçado.

 

Necessitamos saber que não há outro mal estar na cultura e na vida cotidiana mais que pela existência do gozo, esse mal radical que se satisfaz pulsionalmente e que insere um ódio de si em toda demanda de morte.

 

Situadas assim as coisas, podemos ver que o mal que nos carcome e nos faz sofrer jamais é de essência espiritual.

 

Como homem de sua época, Freud situa na cultura, a angústia social das massas órfãs de líderes. Lacan falou do sintoma social, da ruptura da trama social que deixa a nossa espécie na intempérie e no desamparo, pelo empobrecimento simbólico, o que produz a proletarização do discurso.

 

Em seu texto “A Condição Humana” (1958), Hanna Arendt reconhece que a modernidade se caracteriza por uma perda radical do mundo, seja pela clausura do sujeito em si mesmo, como pela propulsão para fora do mundo que é o universo. È por isto que encontrará o mal nas existências banais.

 

Munida com este paradigma observará no processo de Eichman em Jerusalém, que este se apresentou como um homem incapaz de usar uma frase que não fosse um clichê. Foi a vacuidade de suas palavras o que a levou a diagnosticar lhe uma afasia que o incapacitava para pensar e julgar. E é essa posição na vida, sem julgamento nem juízo próprio, reduzido por tanto a ser um “pau mandado” o que Hanna Arendt nomeará de Banalidade do Mal.

 

Estes são os desertos que podem conduzir aos piores oásis.

 

Frente a tragédia humana de não contar com as leis da linguagem poderia se supor que a educação poria limites as mas inclinações ajudando a falar bem por ensinar a gramática da língua. Com esta ilusão esqueceríamos que no século passado vemos aflorar as flores do mal em um dos povos mais cultos da Europa.

 

Podemos ver assim, que são algumas teorias, crenças e ou ideais sobre a educação os que fazem incompreensíveis que haja homens que se deleitando com as obras de Bach, com a leitura de poemas ou de textos filosóficos marchassem logo a cumprir com seu dever nos campos de concentração. Ou escutem “As Valquírias de Wagner”, ao mesmo tempo em que com o Napalm incendiavam aldeias vietnamitas, como mostrou Coppola no seu filme “Apocalipse Now”.

 

Acreditar que a literatura libera, que o amor pelas belas artes ou a comunhão diária humanizam é insustentável. Esses gostos podem coexistir com a decisão assassina de um gozo exterminador. Não esqueçamos que é o gosto do mal o solo propício onde o sintoma se enraíza.

 

Estas questões e outras nos possibilitam perguntar-nos se em realidade se trata somente de ausência de pensamento ou do fracasso da razão. Nós sabemos que nem a pulsão nem o desejo são educáveis.

 

Também se tratando das falhas da linguagem poderia acreditar-se que o cérebro está involucrado o que não deixa de ter sua atualidade.

 

Este é o paradigma que os terapeutas cognitivistas usam para persuadir a seus clientes a pensar positivo e assim alcançar o alto astral. O casamento das neurociências com o cognitivismo propõe o cérebro como processador de informações. Esta foraclusão selvagem que rechaça toda e qualquer forma de subjetividade, nos mostra que o discurso da ciência está feito para anular as particularidades subjetivas, já que respondem ao universal para todo homem.

 

Seria um grave erro acreditar que este discurso é uma abstração inócua. Discurso da ciência e do que ele se desprende, o cientificismo como religião laica, tem efeito em cada um de nos e sobre todos os grupos sociais porque introduz a universalização.

 

Reduzir os processos subjetivos a rede neuronal ou a transtornos sinápticos, explorar o crânio e o encéfalo para ali encontrar o mal psíquico é um infantilismo cínico próprio da nossa modernidade liquida como a nomeia Zygmunt Bauman. Uma loucura científica administrada e promovida pela indústria farmacêutica que cria até doenças para vender o remédio específico.

 

Não podemos esquecer que a arquitetura da destruição nazista apoiou-se na ciência, na biologia racial, o que fez do nacional-socialismo uma biologia aplicada, um racismo cientifico para eliminar o que considerou um mal social. O que Bauman chama de postura de jardinagem que arranca certas plantas por considerá-las ervas daninhas.

 

É evidente que a leitura de Hanna A. a respeito de Eichman, ligando sua incapacidade de falar a sua incapacidade de pensar é correta, já que ninguém pensa e julga sem as palavras.

 

Mais como psicanalistas podemos reconhecer nisso uma causa? A afasia de Eichman fosse ela metafórica ou metonímica, elucida sua posição subjetiva de ser um instrumento na eliminação de parte da humanidade.

 

O mal pode ter como causa só a ausência de pensamento?

 

Eichman não foi como o cão de Pavlov, não foi só uma peça mais na engrenagem mortífera do sistema. A própria Arendt reconhece em seu texto “A vida do espírito” que não há lei ou contexto que elimine a capacidade humana de escolher e de iniciar algo.

 

Eichman nos defronta com a hybris, o excesso, a desmedida, o gozo que há na eliminação e no extermínio dos outros, como oferenda aos deuses escuros.

 

A satisfação no mal que comporta a parte maldita da pulsão de morte é a página ausente que Arendt não pode escrever e que só nós psicanalistas podemos fazer, por saber que essa satisfação não remete a nenhuma razão mais que um tratamento particular do gozo, já que são os mecanismos do inconsciente os que determinam a ação dos sujeitos junto a um real que nada sabe daquilo que se pensa ou julga. É por isto que precisamos encontrar a lei do sujeito no santhome, por serem os modos de gozar produtos da linguagem e de lalingua.

 

Hoje mais do que em qualquer época, nos psicanalistas estamos chamados a limitar o desvario da razão atual que nos leva como a cenoura ao burro a exilar-nos da língua, o que nos animaliza. Este rechaço à humanidade conduz a um autismo que consente na satisfação solitária procurando mais um objeto técnico que um parceiro humano, incrementando desta maneira a satisfação pulsional que nada tem de sexual, se sexual quer dizer uma relação com o outro sexo. Lembremos que na satisfação pulsional estão ausentes tanto o amor quanto o desejo, que são os que produzem uma satisfação em relação a outros parceiros desaparecidos no gozo auto erótico.

 

A saúde da nossa espécie não deixa de depender de que o amor continue albergando ao Outro sexo. Qualquer Eva ou Pandora lembram a ausência na presença assim como dão fundamento as palavras que existem pelo vazio.

 

Cabe-nos então subverter os raciocínios delirantes, esse monótono-teísmo do cientificismo e do mercado seja em nossos consultórios ou como cidadãos no debate publico, necessitamos lembrar que somos mais filhos da língua que de nossos novelas e mitos individuais.

 

É a incorporação da língua, o único fato que possibilita a elaboração de um psiquismo singular e a integração e participação no coletivo, pela integração das coerções, fundamentalmente a interdição do incesto.

 

É por tudo o que lhes disse até agora, que nós psicanalistas por essa caridade que herdamos de Freud, ofertamos uma experiência única: dar a possibilidade a nossos analisantes de aceitar a condição contingente e incurável que lalingua impõe à existência falante.

 

Nessa prática de discurso cada um fará a experiência de como habita a língua onde se entrecruzam o sexo, a morte e a palavra, em uma escrita cuja superfície de inscrição é o inconsciente e jamais o cérebro, e isso lhe possibilitará saber como a língua o adoeceu de forma singular.

 

É por isto que tratamos o mal pelo mal-dito, pelas mal-dições, seja pelo equívoco ou pelo mal entendido.

 

Como vêem uma prática que pode reduzir o que restou em cada um de nos de Auswitz.