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Da dor de não ser ao desamparo de não ter

Por: Ricardo Eduardo Delfino

Trabalho apresentado na Jornada “A Banalidade do Mal”.
São Paulo, 25 de setembro de 2010.

 

Hanna Arendt reconhece em seu texto “A Condição Humana” que o homem perdeu sua relação com o mundo e com o senso comum pelo fato de se inscrever no discurso da ciência, e faz do campo de concentração o paradigma do universo totalitário em seu livro “Origens do totalitarismo”. Nesses textos o aforismo “tudo é possível” é colocado como o traço de nossas sociedades.

Com Lacan podemos dizer, que este traço caracteriza as subjetividades únicas,  os não incautos, os desenganados e os sem vergonha.

Assim, se substitui nestes dias o homo faber pelo homo consumens, onde o outro se torna objeto consumível, desejável, avaliado segundo a quantidade de prazer que possa oferecer de acordo com o índice “custo – beneficio”.

Desorientados na modernidade, os sujeitos se aferram ao que lhes daria um suposto ser: ser bulímico, bi-polar, hiperativo, tornando-se idêntico as suas tendências pulsionais, sádicas, masoquistas, fetichistas, drogadictas, bissexuais, perdendo sua singularidade para formar parte de uma classe.

Os significantes reitores, já não representam ao sujeito no espaço público, e sim suas formas de gozar que se confessam despudoradamente.

Hoje se pretende curar os estados próprios do humano, como a tristeza – que não é uma doença -. A biotecnologia pretende esperançosamente cura-la. Querem consegui-lo a base de medicamentos, construir outra espécie: assexuada, muda, cega e surda, que se conduzirá como é devido segundo o sistema de forma politicamente correta.

As-pirações desta época são a procura por uma felicidade continua, um bom astral constante, ignorando que a felicidade é esporádica, e é por isso que somos amantes dos contrastes, do intempestivo e não previsto.

Para Borges, em todo dia há um momento celestial e outro infernal. Para Vinicius de Moraes: Tristeza não tem fim, felicidade sim…

As formas totalitárias mostram como a prática do mal, ou sem limites, se encontra onde existe a convicção coletiva de que o que se faz se o faz em nome do Bem Absoluto, que no caso do nazismo foi: realizar o que o Fuhrer dizia ou o que ele queria.

Como uma civilização é um modo de gozar, a clínica psicanalítica não pode ser indiferente à subjetividade de uma época, o qual exige do psicanalista que o seja para seu tempo.

O escritor George Steiner em 1959, escreveu “A Linguagem do Silêncio” e no capítulo “A milagre oca” ele reconhece que houve relação entre a linguagem e a inumanidade política do nazismo, o qual podemos ver a olho nu nos usos do alemão desse tempo. Já não se tratava do idioma de Goethe, de Heine, de Nietszche ou de Thomas Mann. Algo destrutivo tinha acontecido em seu seio.  Assim, Steiner nos mostra que o idioma sempre tem em seu interior o germe da dissolução.

Deste jeito foram como os atos mentais espontâneos viraram usos mecânicos e frios, as metáforas morreram e os clichês estavam na ordem do dia.  Foi assim que ficou reduzido o estilo a uma simples retórica. Em lugar do uso comum das palavras emergiram jargões… “A língua deixava de configurar o pensamento para embrutecê-lo”. Podemos lembrar com que gesto jocoso mais não sem seriedade na última entrevista que concedeu Saramago, falava da decadência da linguagem dizendo-nos que em breve para falar de amor os humanos iriam utilizar grunhidos.

Desta forma Steiner conclui que “O idioma alemão não foi inocente em relação aos horrores do nazismo”. “Idioma utilizado para destruir o que do homem há no homem e restaurar em sua conduta o próprio das bestas”.

“Pouco a pouco as palavras perdiam seu significado original e adquiriam acepções de pesadelo”, escreve Steiner: “Algo irremediável acaba de acontecer às palavras… Imperceptível ao principio… O idioma deixará de desenvolver-se e ostentar frescor. Deixará de por em movimento suas funções principais: O veículo da ordem humana que chamamos lei e a comunicação da agilidade do espírito humano que chamamos graça.”

Podemos exemplificar o que disse anteriormente com o slogan capital do nazismo: “A batalha pelo destino do povo alemão” e assim lembrar a redução das pessoas a piolhos, vermes, veneno, infecção, e como o extermínio em massa virou solução final; a evacuação tratamento especial e a deportação, mudança de residência ou reassentamento.

Todas estas mentiras e estes disfarces não privava às pessoas de saberem o que acontecia, as impedia de equacionar isso. E assim com essa maquiagem perversa o mal perdera sua qualidade de ser reconhecido.

Seguindo a mesma lógica em lugar de dizer que coisas horríveis fizeram, os nazistas diziam que coisas horríveis tiveram que fazer na execução de seus deveres.

Concomitantemente ao uso de clichês Eicchman no processo de Jerusalém, se consolava com a idéia de que não era senhor de seus próprios atos, de que era incapaz de mudar qualquer coisa. Desculpava-se por ter agido não como homem, mais como simples funcionário, cujas funções poderiam ter sido realizadas por outrem. Além disso, alguém tinha que fazê-lo. Podemos lembrar também que na Argentina alguns militares ficaram inocentados pela lei da obediência devida.

Desta forma a desaparição do ódio no exercício do terror, faz que a gestão burocrática se insira no lugar da paixão desabitada.

Vemos que a psicanálise se aloja em seu tempo para ler o que se apresenta como bem ou mal, segundo a época seus preconceitos e costumes.

Hoje não são estranhos paranós os slogans e clichês. No livro “A vida a crédito” Bauman reconhece um slogan com o qual os cartões de crédito foram lançados no mercado “não adie a realização de seu desejo”. Assim fica eliminado o tempo, só valendo o agora, se exterminando simultaneamente o esforço o qual oferece atalhos ilusórios para uma satisfação imediata do desejo que se espera encontrar nas prateleiras das lojas.

Os mercados com o que incluem e excluem, com a utilidade imediata e a satisfação impostergável, favorecem o eclipse do sujeito no vivente, na linguagem.

Vivemos o tempo em que as maquinas e os aparelhos se sacralizam, demonizando simultaneamente a relação com as pessoas que podem contagiar, roubar o emprego, ou querer o mal onde o universal da linguagem no mercado globalizado, tem efeitos de desenraizamento cultural, de mobilidade profissional, de precariedade dos laços conjugais e familiares, anonimato, toxicomanias generalizadas, anonimato burocrático, ruptura com as gerações precedentes e esquecimento do passado.

Bauman também escreve que a promessa dos cartões de crédito é subtrair o esperar do querer.

Desta forma temos um novo conto de fadas onde a varinha de condão é o cartão de crédito. Assim, se cria um novo cogito “devo logo existo” onde o cartão é a prova da existência.

O escritor uruguaio Eduardo Galeano nos mostra em seu livro “El mundo al revés” a camuflagem que estão sofrendo algumas palavras para enganar-nos: O capitalismo hoje ostenta o nome artístico de economia de mercado, chamamos paises em desenvolvimento os que em realidade são paises desbastados.

A expulsão das crianças pobres do sistema educativo é chamada deserção escolar. A ditadura Argentina foi chamada de processo. As torturas são chamadas pressões físicas ou psicológicas. À morte de civis, danos colaterais. E até aos engarrafamentos, se o chama de sinais de progresso.

Munidos com esta leitura e sem ridicularizar o que sabemos como psicanalistas, podemos ler a comunidade que construímos, onde o marketing e a publicidade consentindo na soberania do mercado, mascaram, enganam e ordenam os desejos.

Quando o cartão de crédito vale como prova de existência, é pelo exílio da existência o que reduz a cada um, querer ser visto, o que não deixa de ser outro cogito contemporâneo, me vem logo existo.

Desta forma nossa civilização multiplica os voyers e os contemplativos, inflacionando a pulsão escópica. Também assim se propagam e multiplicam as corrupções dos estados, os crimes sexuais, o fundamentalismo, os homens bombas, os famintos, os exilados, os sem trabalho, os sem teto, a solidão nas multidões e a depredação do planeta. E esta não é a comunidade que virá, mais a que estamos vivenciando.

O anteriormente dito, nos mostra como no nazismo e nas guerras preventivas, o saber engendrado pela razão revela uma faz letal, mortífera.

Nossa questão é como aliviar a razão quando está inundada pela pulsão de morte?

Por isso a psicanálise faz sua oferta convidando a falar, a ir ao ser de gozo de cada sujeito, para fazer advir ali uma decisão que pelo amor condescenda ao desejo.

Tanto no consultório quanto no social, será nos mecanismos inconscientes da repetição onde leremos e verificaremos o modo de satisfação no mal-estar ou na satisfação do mal.

A psicanálise não existe sem outros discursos mais é o discurso que pelo ato analítico pode chegar ao inclassificável e indizível para outras práticas.

É condição para isto, por em jogo a contingência de lalingua, onde a satisfação se diz, já que a contingência leva a cada um ao que ignora de si, ao equívoco que o equivoca permanentemente.

Quero dizer, para terminar que é certo que como analistas não esperamos dos ditos nenhuma garantia de verdade, mais sim que nos ofereçam sua matéria para ler os signos de gozo e que este modo de ler é válido tanto na prática analítica, na leitura de textos, como na leitura do social.